domingo, 14 de junho de 2015

Cinza




Eu sempre soube que todo mundo era mais ou menos igual. Ora, somos todos feitos da mesma matéria. Do pó viemos e ao pó voltaremos. Todos pó. Todo mundo é mais ou menos cinza; descolorido. Pó de fábrica. Não sei porque, mas eu sempre achei que pó de fábrica deveria ser cinza. Cinza que nem todo mundo. Depois de um tempo, cinza vira sinônimo de tédio. Gente - que é sinônimo de cinza - vira sinônimo de tédio. Até eu, no fim das contas, virei um tédio. Porque, se bobear, eu sou mais cinza que todo mundo.


É curioso isso de todo mundo ser cinza, sabe? Todo mundo da mesma cor e um que se destaca é logo percebido. Mas geralmente é só algum engano. Certamente há alguma coisa na Física que explique como o cinza pode parecer tão colorido às vezes, só pra me tapear com sopro cuidadosamente calculado de ilusão. E o cinza vai parecendo mais sem graça a cada vez que isso acontece. Parece impossível, mas assim é. Deve ser Deus o culpado; Ele manda em tudo, não é? Ele deve ser cinza.


Não ache você que cinza, só porque é sem graça, é perfeitamente tolerável. Não é. É horrível, se você quer a minha opinião. Se todo mundo fosse branco, ou preto, ou vermelho, ou a porcaria da cor que fosse, até suportaria. Mas cinza? Cacete. Cinza nem parece cor. É essa coisa meio vomitada que alguém decidiu que seria cor. Que infeliz ideia. Antes tivesse decidido que cinza seriam as pessoas!


Cin.za s.f  1. ser humano ∎ adj.2g.2n.s.m cinzento


E seria tão apropriado! "30 cinzas mortos em desastre natural", "Cinza mata três outros e foge em seguida", "Cinza pula de prédio após constatar quão patética é sua existência". Tudo faria muito mais sentido se assim fosse. Todos os cinzas do mundo teriam consciência plena da sua cinzitude e dela tirariam o proveito que pudessem. Entretanto, os cinzas seriam, por natureza, muito tapados e isso lhes permitiria tirar, de fato, muito pouca vantagem. Apenas alguns acidentes raros seriam capazes de ser menos tapados, o que lhes daria alguma chance a mais do que tinham os outros. Ainda assim, a cinzitude, traiçoeira como é, não lhes permitiria ser nada muito digno de nota; seriam apenas ligeiramente menos indignos. E apenas isso.


Os únicos capazes de ser grandes, fortes e notáveis seriam aqueles com traços coloridos. Mas, se até aqui eles não tinham sido citados, certamente isso significa que não eram lá muito numerosos. A verdade, crua e fria, como é de sua natureza, é que os de traços coloridos praticamente não existiriam. Vez ou outra surgiria algum, mas logo sucumbiria.  Descobririam que a cinzitude não era natural como se pensara a princípio; como eu pensei. A cinzitude, cochichariam pelos cantos, é doença! Incurável e altamente contagiosa.


Perdição. A humanidade teria seu fim. Todos patéticos, tediosos e sem ambições. Acabaria a pintura, os livros virariam objeto qualquer, silenciariam-se os instrumentos todos, até as paredes e mesas e cadeiras perderiam o pouco de cor que lhes restava; tudo cinza. O único som a ser ouvido, substituindo as risadas e os gritos animados, seria "tec, tec, tec, tec...".
A Terra era um grande escritório.


Lucia Rodrigues Britto,

Junho, 2015.

sábado, 16 de maio de 2015

Despedida

A
melhor
noite
pro melhor
moço.

Os
mais
belos
sonhos
pro mais belo
moço.

Até Hoje
pra você,
que é
o
moço.
<3


Poesia de despedida pra ele,
o moço.
Lucia R. Britto
Maio, 2015

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Crescer dói

Andando na pracinha em frente à minha casa vi duas garotinhas. Uma tinha cabelos curtos e castanhos, sorria belamente e vestia vermelho. A outra tinha os mesmos cabelos curtos e castanhos, e um sorriso que fazia par com o da outra, pois belo também era. O privilégio de ser espectadora das duas causou em mim indelével encantamento. O sorriso que era fácil no rosto delas o era no meu.

Quando decidi voltar para casa, olhei uma última vez para elas. Naquele exato momento, saíram dos meus fones os primeiros acordes de uma música. E a emoção desceu por meu rosto, porque eu gostaria de ter podido colocar as duas em meu colo apenas para dizer:

“Crescer dói, meninas. E nós que já crescemos um pouco sabemos bem disso. Dói um pouquinho mais a cada vez; os pesos vão aumentando (esse peso que os mais velhos chamam ‘responsabilidade’ é um deles). Vai ficando mais difícil, mas se pegamos na mão de alguém, tudo se torna mais tranquilo. Mais fácil, até. Portanto, não soltem uma da outra. As suas mãos, ora tão pequenas, crescerão e ficarão fortes e servirão para dizer ‘Eu estou aqui, e você sabe que é mais fácil quando estamos juntas.’ sem que qualquer palavra seja dita.

Servirão, também, para que os cadarços e nós desatados que surgirão pelo caminho sejam amarrados. Por favor, não não se esqueçam de fazer isso. Esses tais nós e cadarços, quando mal amarrados, nos fazem tropeçar. E tropeços podem ser bem ruins.

Todavia, se vocês, mesmo com todo cuidado, deixarem algo solto e disso vier um tropeço, não se desesperem. Nesse momento vocês terão de levantar aquela que tiver caído. Sejam fortes nesse momento; mantenham as mãos firmes, estendam-nas e puxem a outra. E jamais, por mais difícil e dolorido que seja o levantar, simplesmente parem. Vocês precisam continuar andando. 

Quando menor, eu tinha dores muito fortes nas pernas. Os médicos disseram que era ‘dor do crescimento’ e que passaria à medida que eu fosse crescendo. Eles estavam certos, realmente passou. Mas quando digo que crescer dói, nem sempre é dor física, igual a essa que eu tinha. Geralmente são dores na nossa alma. E isso nos faz precisar de mais força ainda.

Quem sabe, se vocês olharem pros seus heróis e heroínas, verão as mesmas dores neles. Todo herói precisa crescer, meninas. E crescer dói. Só que, geralmente, se consegue conviver com a dor. Mãos dadas, cadarços amarrados e força pra levantar e seguir adiante é uma boa receita. Espero que dê certo pra vocês!”

“Crescer dói, mas de mãos dadas é mais fácil
Crescer dói, vamos amarre o seu cadarço
Crescer dói, você precisa continuar andando
Crescer dói, por isso estou sempre me levantando

Crescer dói
Crescer dói
Crescer dói
Mas essa foi a história de todos os heróis”

- Selvagens à procura de lei

Em homenagem aos que me fazem seguir adiante (a um em especial). Com amor.

Lucia R. Britto,
Abril, 2015


quarta-feira, 8 de abril de 2015

Largada

Foto: Lucia Britto

Quem eram seus adversários? Bem, ali só havia ele. E é bom que seja assim. Ganhar de si mesmo é a maior das vitórias! Sorte, criança!

- Mãe, não passa dessa linha, tá? Aqui é a largada!

A linha no chão, que um dia talvez foi branca, poderia ser um monte de coisas. Inclusive só uma linha branca (ou não) desenhada no chão. Para aquele pedaço de gente, no entanto, era o ponto de partida de alguma corrida.

Lucia Britto,
Abril, 2015

segunda-feira, 30 de março de 2015

Ternura cotidiana

A frustrante sensação de perder um ônibus por poucos segundos é absurda. E quem usa esse tipo de transporte rotineiramente a conhece muito bem. Ver o dito cujo de longe, calcular rapidamente as chances de subir nele e correr (muito) é o procedimento padrão. 

Às vezes se consegue, às vezes não. Hoje mais cedo eu não consegui. Fiquei soberbamente brava por isso. Eu tinha horário e, caramba, eu chegaria atrasada por causa daquele maldito ônibus! 

Por mais que se pragueje e embraveça, não há prova alguma de que algum motorista tenha voltado para buscar um não-passageiro eventualmente muito irritado. Sabendo disso, fiz o que podia: sentei-me. 

E meus olhos pousaram numa cena pouco comum. Uma garota, de seus 16 anos, sentada, conversando com um hippie. 

Eu, como quase todo morador de Campo Grande, já vi hippies várias e várias vezes. Na Praça Ary Coelho, nas ruas do Centro, nos terminais de ônibus; aquele homem e sua arte não eram novidade no meu cotidiano. Mas o interesse daquela garota no velho homem com quem conversava era, com certeza, incomum. 

E mais que incomum, tocante.


Lucia Britto
Março, 2015

sábado, 28 de março de 2015

In memoriam*

Edson Luis de Lima Souto. Estudante. 18 anos. Morto por lutar pelo ideal de um Brasil livre e justo.

O ano era 1968. Edson fazia parte do grupo de secundaristas que se alimentavam e se reuniam no restaurante Calabouço**. As conversas ali eram conversas sobre o fim da ditadura, sobre um país livre, novamente democrático. Os próprios militares consideravam o local foco de agitação estudantil.

Em 28 de março daquele ano, os estudantes do Instituto Cooperativo de Ensino, que comiam no Calabouço, organizaram um enorme protesto relâmpago para gritar contra o alto preço e a má qualidade da comida servida no lugar. Houve forte confronto com a polícia militar. Edson Luis levou um covarde tiro à queima-roupa em seu peito; o jovem tombou ante a truculência ditatorial. Seus companheiros cercaram-no para que não fosse tirado dali, para que não se tornasse mais um dos tantos que, levados pela polícia, tiveram seus corpos desaparecidos.

Todos os presentes levaram o corpo de Edson à Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, onde foi velado. No dia do enterro, mais de 50 mil pessoas levaram o caixão ao cemitério. Aquela multidão, carregando velas e cartazes, gritava: “Mataram um estudante, podia ser seu filho!”. 47 anos depois, nós gritamos: “Mataram um estudante, podia ser eu, podia ser você!”

Hoje, nossa causa é diferente da de Edson, de seus companheiros e dos outros que viveram naqueles terríveis anos. Lutamos por outros motivos, mas seguimos lutando! A memória desse jovem seguirá conosco; o seu sangue não será esquecido! Sua luta não foi em vão, e a nossa também não será!

Avante, Secundaristas!

*Este texto foi motivado pela intervenção realizada pelo coletivo Sétimo Tempo, no IFMS - Campus Campo Grande, em memória do companheiro Edson e da luta secundarista em resistência à ditadura militar brasileira.

**O Calabouço era, na verdade, o Restaurante Central dos Estudantes. O restaurante oferecia comida a baixo custo para estudantes de baixa renda no Rio de Janeiro. Inaugurado em 1951, por Getúlio Vargas, foi fechado quando se deu o Golpe de 1964 e reaberto três meses depois.


Lucia Britto
Março, 2015

sexta-feira, 27 de março de 2015